Henrique Herkenhoff

Um sonho de liberdade

Já que não existe pena de morte para crimes comuns no Brasil, uma parte significativa da sociedade parece desejar que criminosos fossem simplesmente atirados dentro de uma jaula e esquecidos até o fim de suas penas. Ainda que isso não fosse impossível em uma democracia ocidental, não há nada menos inteligente a se fazer, se lembrarmos que um dia eles serão libertados. Se trancarmos um cão dessa maneira, é provável que ele nos ataque quando abrirem a jaula; por que seria diferente com um ser humano?
Se olharmos com um mínimo de atenção, veremos que não faz o menor sentido promover uma reintrodução abrupta do condenado ao convívio social; ao contrário, isso deve ocorrer em estágios cuidadosamente controlados, em primeiro lugar para que ele vá se acostumando aos poucos à liberdade; em segundo, para que ele esteja sob forte pressão interna de não “escorregar” e prejudicar uma libertação próxima; em terceiro, para que seja possível avaliar o quanto ele realmente está, ou não, apto para a soltura condicional. Por falar nisso, é preciso lembrar que o preso, quando liberado, ainda não cumpriu toda a sua pena e continua por bastante tempo sob o controle de agentes públicos; se ele voltar a delinquir, cumprirá não somente a pena pelo novo crime, mas também o restante da condenação antiga.
As tão satanizadas “saidinhas” nada mais são que uma primeira fase, em que o apenado, já próximo da condicional, prova o gosto da liberdade, de que já se havia esquecido. Contudo, deve se reapresentar espontaneamente para voltar à “tranca”, sob pena de ser regredido ao regime fechado. Aos poucos as regras disciplinares vão sendo suavizadas até que esse condenado passa a trabalhar fora da prisão e retorna para passar as noites na cela.
Para avaliar o sucesso desse processo, basta ver que, na fase inicial desse regime, com as “saidinhas”, mais de 96% se reapresentam pontualmente. E isso não significa que quase 4% saiam pelo mundo matando pessoas em série. A maioria acaba se apresentando fora do prazo ou é recapturada. Volto a frisar: sem esse primeiro passo, seria necessário um enorme salto para se autorizar o trabalho externo ou, o que seria ainda pior, passar do regime fechado à liberdade completa sem qualquer transição.
Neste último incidente em que um ônibus do Transcol transportando internos do sistema carcerário foi atacado, nem mesmo aqueles que escaparam do local no momento o atentado deixaram de se apresentar no estabelecimento prisional. Embora sem vigilância todos, sem nenhuma exceção, voluntariamente continuam cumprindo sua pena. Sim, porque não fazia sentido estragar tudo quando a porta de saída está logo ali. Em outras palavras, apesar de tragicamente agredidos, 100% desses presos (com a óbvia exceção daquele que foi assassinado) não hesitaram diante da oportunidade de fuga.
É fácil ver que o sistema de progressão de regimes no cumprimento de penas, em si mesmo, funciona muito bem, mesmo nas precárias condições do nosso sistema carcerário: superlotação, falta de policiais penitenciários, falta de outros profissionais (psicólogos, assistentes sociais etc.) Problemas há, mas definitivamente não nas saidinhas ou no trabalho externo, cujos percalços apenas refletem outras fragilidades da execução penal.

Publicado em A GAZETA dia 20/03/2022

https://www.agazeta.com.br/colunas/henrique-herkenhoff/um-sonho-de-liberdade-o-papel-da-saidinha-e-do-trabalho-externo-0322

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